Contratos, pandemia e eventos imprevisíveis

O surgimento e proliferação da COVID-19 foi um acontecimento atípico e imprevisível, que gerou novos desafios e consequências imediatas na saúde e economia mundial. Importante incluir nesta equação o efeito surpresa, tendo em vista que nenhuma sociedade estava preparada para suas consequências.

Desta forma, o vírus afetou não só os infectados e os sistemas de saúde ao redor do mundo, mas todas as pessoas e empresas da sociedade. Como consequência desta situação dramática, a inadimplência em contratos civis (alugueis, venda e compra de imóveis, carros) e empresariais (compra de matéria prima e suprimentos, por exemplo) leva as pessoas a refletirem sobre seus efeitos e o que pode ser feito, já que praticamente nenhum acordo previu o surgimento de uma pandemia viral.

Ainda assim, os contratos geralmente possuem uma cláusula que possibilita a sua extinção ou modificação em caso fortuito ou de força maior. Por caso fortuito ou força maior, entende-se como significado a ocorrência de fatos imprevisíveis que impossibilitam completamente – ou mesmo parcialmente – a manutenção do acordo.

Refletindo a respeito, é possível concluir que essa disposição radical não é a solução ideal para a maioria dos casos, apesar de ser uma tese viável juridicamente.

Uma situação de crise exige maior tolerância de todos os setores da sociedade para evitar maiores danos. Ambos os lados – vendedor e comprador, locador e locatário, entre tantos outros -, precisam priorizar o relacionamento ao invés de tentar judicializar os problemas que enfrentam. A quebra de milhares de contratos de duração média/ longa é tida quase como inevitável e, portanto, a restauração do equilíbrio contratual é o principal caminho para a manutenção destas importantes relações e a sobrevivência sustentável das empresas, seja por meio de renegociações ou utilização de novos artifícios contratuais.

Neste sentido, deve ser considerada a utilização da cláusula hardship nos novos contratos, que balizam e possibilitam o restabelecimento do equilíbrio contratual, ao invés da drástica extinção do contrato, em situações que podem ser juridicamente contornáveis.

Este conceito é largamente utilizado em contratos internacionais e amplamente reconhecido em diversos ordenamentos jurídicos – inclusive no Brasil, pois a autonomia das partes é aceita quando não ofende normas imperativas e ordem pública, que são aquelas normas que as partes não podem alterar, independentemente de suas vontades.

Interessante destacar que a aplicação da cláusula hardship é idealmente feita, segundo o instituto internacional UNIDROIT[1], quando ocorrem eventos que alterem o equilíbrio contratual, seja pelo aumento do custo na execução do contrato ou pela diminuição do valor de seu objeto. Importante ressaltar seus requisitos:

  1. Os eventos devem ser posteriores ou sabidos posteriormente à data de assinatura do contrato;
  2.  Os eventos não poderiam ser razoavelmente previstos pela parte prejudicada no momento em que o acordo foi firmado;
  3. Os eventos estavam fora do controle da parte prejudicada;
  4. Os riscos dos eventos não foram assumidos pela parte prejudicada[2];

Desta forma, é nítido que a aplicação desta cláusula não é feita de maneira arbitrária, mas tem requisitos específicos para filtrar as situações que cabem a revisão do contrato. Assim, é possível restaurar o equilíbrio, para que seja vantajoso a ambas partes. Mas como isso pode ser feito?

Cada contrato deve prever o modo de solução mais adequado de acordo com o tipo relação retratada. Normalmente é sugerido o estabelecimento de um período de renegociação amigável, que caso não seja frutífera, pode ser seguida de mediação ou até arbitragem, que é quando um profissional neutro e habilitado para tal, intermedia o conflito das partes para que possa ser obtida a solução amigável entre as partes, um acordo.

Há inúmeras possibilidades, mas geralmente não é recomendado recorrer ao Poder Judiciário como forma de solução, pois além de sua lentidão devido à sobrecarga de processos, é possível que a decisão frustre as chances de salvar a relação contratual prejudicada, bem como frequentemente as decisões judiciais não são vistas como adequadas para ambas as empresas; normalmente há descontentamento com a decisão do magistrado.

Esse tema é extremamente amplo, mas a ideia deste artigo é apenas chamar a atenção para este artificio contratual pouco utilizado e subestimado pelas empresas, que não só poderia salvar importantes relações em pandemias – como a que estamos vivendo – mas também na ocorrência de muitos outros eventos igualmente imprevisíveis.

Em contratos de longa duração, o imprevisível deve ser previsto e, mais do que isso, uma solução deve ser estabelecida no próprio instrumento, pois a extinção do contrato não é a solução ideal na maioria dos casos.

Uma das funções de um contrato eficiente é diferenciar as situações que inviabilizam completamente a sua manutenção das situações em que apenas novas soluções devem ser encontradas. Como no Brasil ainda não existe uma tradição no uso desta modalidade de cláusula, neste momento de crise recomendamos que todos adotem uma postura mais flexível na renegociação de aditivos contratuais e maior atenção e cuidado na celebração dos próximos contratos.

Finalmente é válido ressaltar que um jurídico estratégico não necessariamente envolve somente a judicialização dos problemas enfrentados pela empresa. Economize seu tempo, economize seu dinheiro e contrate um bom advogado para negociar por você e tentar manter aquele seu parceiro comercial importante.


[1] Instituto Internacional que se dedica à uniformização do direito privado mundial.

[2] Tradução livre do “UNIDROIT PRINCIPLES OF INTERNATIONAL COMMERCIAL CONTRACTS 2016”, cláusula 6.2.2.


Gabriel D'Avila Souza Fraiha. Advogado. Graduado na PUC-Campinas. Mestre (LLM) em Direito Internacional dos Negócios pela ESADE Business & Law School - Barcelona. Especialista em Diploma Legal 360: Management & Cross Skills for Legal Professionals pela ESADE Business & Law School - Barcelona. Curso de Mediação e Arbitragem pelo Instituto de Direito Contemporâneo. Co-autor da obra Direito Globalizado, Ética e Cidadania, vol2. Ed. Arraes. 2017. Idiomas: Português, Inglês, Espanhol, Catalão, Russo, Francês.
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